Pinóquio, Del Toro e um cinema desmonstrualizado

Rostand Tiago
3 min readDec 13, 2022

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Pinóquio é uma linda síntese de tudo o que transformou Guillermo del Toro em uma das figuras mais cativantes do cinema mainstream contemporâneo. Alguns anos atrás, escrevi sobre a Forma da Água, um texto que não sinto já muita simpatia — assim como quase todos os outros que escrevi e, muito em breve, esse aqui também — e não quis revisitá-lo. Mas lembro de ter dito algo sobre o cineasta mexicano ser uma grande criança serelepe brincando de fazer filmes bonitos.

Não sei se concordo ainda inteiramente nessas palavras, mas a ideia geral sobrevive. Hoje, o que chamei de “ser criança” troco por “uma postura estética que cria uma ideia visual de inocência a partir de uma linguagem cinematográfica desmonstrualizada”. Uma troca entediante, levemente pedante, mas também um pouco chique. Tento explicar. Provavelmente não vou conseguir.

Primeiro, gosto de pensar o cinema de Del Toro a partir de alguns discursos recorrentes em sua carreira. O primeiro é o trabalho em cima do revisionismo da ideia do monstro, um dos mitos fundadores do cinema narrativo, da criatura do Dr. Caligari ao Chupa-Cu de Goianinha, que por sua vez, traz consigo o abraço forte ao estranho, sempre com um exercício sem muitos arrodeios de alteridade e empatia perante o desconhecido.

É um jogo muito simples, até meio bobo, de apontar que os monstros de verdade não são os de chifres, escamas ou madeira, mas os de farda, ternos, batas e batinas. Mas o que de fato cativa em seu cinema é como tudo isso não se prende apenas na instância narrativa, mas escorre por toda sua linguagem cinematográfica. Del Toro opera uma desmonstrualização não só de personagens, mas também da imagem.

As sombras, o soturno, as texturas pegajosas, as anatomias desfiguradas e os movimentos corporais estranhos, o sangue, os lugares inóspitos, tudo recebe um tratamento imagético que passa pela lente do encantamento e do fascínio, longe da hostilidade que lhes deveriam ser naturais. A plasticidade do mundo apresentado também passa pela inocência que converte o dito feio em belo.

A partir de então, a inocência se torna uma forma de inteligência e de percepção desse mundo. Elisa (A Forma da Água), Ofelia (O Labirinto do Fauno), Liz Sherman (Hellboy), Pinóquio e Gepeto acabam sendo grandes pontos de sintonia com esse mundo desmonstrualizadoi, que transforma o estranho em belo e romântico.

E isso não os reduz a ingenuidade ou a leveza de ser. Pelo contrário, seus traumas são profundos, há raiva, erotismo e melancolia em suas vidas. Mas a forma de lidar com esses demônios acaba vindo pelo abraço ao outro abjeto, em melodramas que cativam até com uma certa simplicidade emocional, mas impulsionados por toda uma imagem que ressoa suas formas de estar no mundo.

É algo que está presente nos mais diversos gêneros que Del Toro decidiu se aventurar. Em diferentes medidas, há algo disso em um filme sobre robôs gigantes saindo na mão com monstros gigantes ou na história de um boneco de madeira que ganha vida.

Nesse sentido, Pinóquio acaba sendo uma das abordagens mais diretas e frontais desses elementos que lhe são muito caros. A dureza dos movimentos, o contraste entre os traumas e a descoberta do mundo, o fascínio pela arte e a imaginação como lugar seguro, tudo é mais um mundo desmonstrualizado por meio da inocência enquanto linguagem fílmica. Mais do que nunca, fica a sensação de se tratar de uma grande criança serelepe brincando de fazer filmes bonitos.

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